segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Lispector


Tripé
(Natalie S. Dowsley, a partir de Clarice Lispector)

"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. (...) Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar." (Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H., p.11 e 12).

Estável. Segura. Protegida.
O tripé que me conforta,
as três pernas que me sustentam,
me oferecem a ilusionária tranqüilidade,
a insensata certeza de que tudo está bem...

Ao longo dos anos, acumulei
aprendizagens, descobertas,
dores;
hoje, levantei-me da cama
e todas essas coisas,
tão antigas,
eclodiram como uma bomba silenciosa,
dentro de mim.

Cai sobre minha própria surpresa,
incômodamente impressionada,
como se algo me faltasse...
e me sobrasse.

A ausência de certezas tomou conta do quarto.
Senti medo, mas encarei a barata que me olhava
de dentro de mim mesma,
questionando o que sou,
o que faço,
o que posso fazer...

"(...) todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa." (p.27)
Inclusive o meu.

Encaro meu rosto, no rosto do inseto,
pequeno, frágil,
forte, poderoso.
Não sei quem sou!

Minha face é, como todas,
um mistério,
um silêncio.
Meus meio-sorrisos podem significar
muitas coisas...
ou, simplesmente, nada...

nada que eu conheça.

Hoje, em pé junto à cama,
descobri que havia perdido uma perna...
restavam-me apenas duas!
E a estabilidade que me acomodava desapareceu.
Ficou a angústia, a dor
e a certeza de que,
só agora,
começarei a ser feliz.

"(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender." (p.11).

domingo, 21 de setembro de 2008

Doação


Quando morrer
quero que, o que ainda servir,
seja oferecido a quem desejar,
para que partes de mim
tenham uma serventia melhor
do que apenas metamorfosear-se
em adubo.

Quando meu corpo cansar
de lutar contra minha companheira
de vida, a morte,
espero que meus olhos possam enxergar,
através de outras órbitas,
novos sonhos.

Quero que meu coração
pulse um pouco mais
no peito de alguém que
queira amar
e que, amando,
viva cada dia mais, melhor.

Espero que meus rins possam
continuar filtrando
a raiva, a tristeza, as mágoas,
limpando outros sangues,
outros corpos,
outras vidas.

Enquanto viva,
ofereço o que posso
daquilo que meu corpo me dá;
o sangue que não me falta,
a medula que se regenera...

Ofereço-me, em partes
vivas,
na esperança de que,
unidas em novos corpos,
estas partes sejam um todo,
integralmente saudável
e potencialmente feliz.

Natalie Dowsley.

Obs.: O HEMOPE ESTÁ INICIANDO OS CADASTROS DE POSSÍVEIS DOADORES DE MEDULA ÓSSEA. QUEM SE INTERESSAR, PODE LIGAR PARA: 0800 811 535.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Sobre "Ensaio sobre a lucidez"


Humanidade
(Natalie Dowsley)


A mulher do médico. Novamente, esta figura tão intensamente comum, cotidianamente real, surge nas páginas de Saramago.

Mais uma vez provoca, ao seu redor, mudanças; votos em branco? uma nova epidemia?; acredito que a grande mudança foi, de novo, a humanização dos personagens ao seu redor.

Quando digo "humanização", não quero dizer que, antes dela, cada personagem não houvesse componentes "humanos" - seria isto impossível! - nem quero dizer que apenas os bons comportamentos e pensamentos são parte da "natureza" humana...

Estou a dizer, apenas, que, pela segunda vez, a mulher do médico traz à tona os conflitos humanos, aqueles escondidos nas narrativas do dia-a-dia, na rotina da vida. A força desta mulher permite com que as fragilidades humanas reapareçam, com mais força, nas linhas das tantas histórias de vida reveladas. Suas palavras, sua força, suas lágrimas contidas, sua visão tão perspicaz... tudo isto permite com que as pessoas ao seu redor sejam enxergadas com maior profundidade... e que, mais importante, se enxerguem com mais intensidade, honestidade.

A lucidez não parece estar diretamente ligada às escolhas políticas de uma cidade; a lucidez parece ser a capacidade que algumas pessoas desenvolveram, após a esclarecedora e iluminadora cegueira branca, de enxergarem, verdadeiramente, sem vendas, sem máscaras, sem medos, a bela/triste/complexa/simples/real/mitológica "condição humana" - assim, puderam enxergar melhor a si mesmos, aos outros ao redor...

As escolhas, numa urna, parecem ser apenas uma das tantas mudanças que as pessoas desta cidade vêem realizando, dentro de si mesmas, há quatro anos...

Mudanças que podem ser vistas não apenas nos votos, mas no ato de varrer as próprias ruas, de agirem como o beija-flor no incêndio, cada uma a fazer uma parte, a que lhe cabe, contribuindo para o bem de todos.

A mudança "de fora", a lucidez nas ações com os outros e com o mundo, penso eu, estão claramente condicionadas às mudanças "de dentro".

Lúcidos, donos de suas próprias escolhas, ações, emoções, as pessoas da cidade desconhecida - mas, tão bela! - deixam lições valiosas para quem quiser conhecer melhor a própria humanidade... e humanizar-se ainda mais.


"(...) alegra-nos verificar que viu a luz, não a que o dito ministro quer que os votantes da capital vejam, mas a que os ditos votantes em branco esperam que alguém comece a ver."
(Saramago, Ensaio sobre a lucidez, p. 110 e 111).




















terça-feira, 9 de setembro de 2008

Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
(Fernando Pessoa)

Palabras Urgentes


"Palabras Urgentes

Estamos viviendo tiempos de profunda transformación. Escribo estas palabras y creo que esta es la historia de la humanidad, la transformación constante. Y en este tiempo, tiene el matiz de la deshumanización, del hambre sin sentido, de la atrocidad de una guerra despiadada. No puedo dejar de nombrar esto, no me resulta indiferente, y este contexto, es parte del texto, de la necesidad de nombrar, de la urgencia de ponerle palabras a tanta impotencia; la urgencia de recuperar la palabra, la palabra potente, creadora, libre, que pueda transformar..."


("EL ELOGIO DE LA PALABRA de su integridad , de su magia y de su poder transformador" / Viviana Rey - 2003)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Crescer


Cada dia cresço mais.
Uns dias cresço pouco,
como se houvesse faltado chuva
e a seca calou a semente pronta para nascer;
Outros dias cresço muito,
cresço tanto
que até me assusto com as nuvens ao meu redor.

Vivo nesse movimento:
cresço
não cresço
cresço
não cresço...

Mas, mesmo naqueles dias que parece que não aumentei nenhum milímetro,
mesmo nestes dias
muitas coisas acontecem
prepararando, ao menos, as sementes,
para que,
no momento certo,
elas possam germinar,
crescer,
atingir as alturas.

Às vezes achamos, como Alice,
em seu País das Maravilhas,
que é preciso crescer (ou diminuir...)
quando comemos um bolo...
Esquecemos que um bolo, um simples bolo,
nem sempre tem o "poder"
de nos fazer mudar - para cima ou para baixo.

Um bolo não provoca, a princípio,
grandes transformações.
Porém, lá dentro de nós,
na barriga, no coração,
nos pés e nas mãos,
tudo o que colocamos "para dentro"
reflete no que somos, do lado de fora.

Pequenas experiências, cotidianas,
rotineiras,
podem não causar espantosas metamorfoses...
mas, com certeza,
terão modificado algo em nós...
que, mais na frente, poderá resultar
em grandes transformações,
em asas de borboleta,
em vôos coloridos.

Todos os dias cresço.
Ora percebo,
ora ignoro;
algumas vezes me dói,
outras tantas vezes me alegra.

Há algo, contudo,
que nunca muda:
quando mudo,
o mundo muda junto comigo.
Meus olhos, meus dedos, meus sentimentos...
tudo o que sou/estou vê, sente e toca o mundo
a partir e através de mim mesmo...

Por isso, para cuidar do mundo,
para construir um mundo melhor,
preciso cuidar de mim,
me aprimorar,
melhorar,
crescer...
ser feliz!
Assim, terei o mundo que tanto desejo - dentro e fora de mim.

Natalie S. Dowsley.