sexta-feira, 14 de agosto de 2009

LoUcuRa


"A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar - ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. E isso me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas."
(Clarice Lispector, "A paixão segundo G.H., 1998: p.70).


Não existe mais um critério completo ou completamente aceito sobre "loucura". Esta é uma daquelas palavras - como "guerra", "amor" e "saudade" - que não se consegue explicar inteiramente: sempre resta um pedacinho de palavra mal-explicado, incompreendido.
Assim é a loucura. Um mistério óbvio, maior do que o mordono homicida nos livros de suspense.
Todos sabem, ao menos em parte, o que é a loucura, mesmo que apenas uns poucos queiram realmente sabê-la, conhecê-la...
A barreira que separa os "sãos" da palavra loucura é, com certeza, bem mais forte do que a que separa as pessoas da loucura em si. Porque, para "enlouquecer", assim como para morrer, "basta estar vivo", como já diz a sabedoria popular.

A loucura é o que disse Clarice: a volta de coisas grandes, que se tornaram densas demais, com o passar do tempo, e que já não conseguem mais ficar estancadas: precisam sangrar.
E quem não tem, na vida, experiências e lembranças e sentimentos que, se pudesse, preferiria não ter? Coisas pesadas, que enchem o peito de escuridão quando vêm à tona...
Quando saudáveis, conseguimos colocar esses nossos pesos em sacolas grandes e resistentes - ao menos pensamos que elas são assim! - e as guardamos em armários, em um dos muitos que vivem em nós. Escolhemos os armários mais distantes e escuros para abrigar essas malas, pois não pretendemos voltar com freqüência a este local. Claro que, de vez em quando, ao longo da vida, uma coisa ou outra escapa dessas sacolas, desses armários, e nos visitam de surpresa, fazendo tremer as mãos e chorar a alma.

Mas a loucura é o mar revolto.
É quando todas as sacolas e armários indesejados resolvem se rebelar: fazem um grande motim, arrancam as algemas, destrancam as portas. E, de repente, voa tudo em cima de alguém. O caos domina.
Na loucura, o sofrimento é imenso, obviamente, já que todo o peso de uma vida despenca, com violência, sobre uma pessoa. Os traumas desse acontecimento são inevitáveis: ossos quebrados, fraturas expostas, medo do mundo inteiro, sentimento de incompreensão...
Por isso que o tratamento é difícil: são muitas feridas a cicatrizar.
Os remédios ajudam, as terapias ajudam, os amigos ajudam, a família ajuda: tudo pode ajudar, desde que realmente a intenção seja a de ajudar. Porque não é fácil, também, para os outros, os "de fora", conseguirem ajudar. Porque a loucura faz parte daqueles temas proibidos, assuntos-tabu, que a gente tem a sensação/ilusão de que, quanto menos falar/pensar, melhor, pois ficam mais longe de nós.
Por isso que não falamos com nossas crianças sobre a morte, a loucura, abusos sexuais, solidão... E por isso crescemos achando que essas são coisas muuuito distantes de nós!
E muitas vezes, por achar que o mundo pode ser feito só de alegrias, buscamos a "felicidade" como se fosse um item de supermercado: com pressa e avidez, ansiedade e desespero! Que tristeza essa imagem! Não fomos/somos educados para a vida. E faz parte da vida, de todas as vidas, momentos de diversos sabores e tons. Nenhuma vida é novela: todos os dias teremos momentos tristes e felizes, sãos e loucos... em intensidades que variam, claro, de pessoa para pessoa, de época para época de cada vida. Mas, assim como a morte, assim como a felicidade, a loucura e a sanidade estão sempre à espreita, nos acompanhando. Uma pode se sobressair mais do que a outra. Mas todas as possibilidades estão vivas em nós, até o último suspiro.

Um comentário:

Patrícia disse...

Parabéns Nathi! Adorei do texto e das idéias. De fato a loucura é um tema encantador e muito instigante... Um "mistério", mesmo. Bjs